'Minha prima abusou de mim e só hoje vejo como foi problemático'o

Fonte: BBCNews Brasil Foto: Camila Rosa
O tabu da violência sexual contra meninos e homens no Brasil
Os churrascos de domingo na casa da avó materna eram o momento preferido de André. Era ali que ele, aos 7 anos, encontrava a família, ouvia samba com os tios e se divertia com as outras crianças da vizinhança. Um acontecimento, no entanto, estaria sempre presente nas lembranças: foi naquela mesma casa que sofreu violência sexual pela prima mais velha, que tinha 15 anos.
Hoje, aos 29, ele conta que as
memórias da época são difusas. Mas diz não ter dúvidas de que os abusos
aconteciam com frequência, sempre longe do olhar dos adultos.
No quarto escuro, a prima dizia
que era o momento de brincar de dormir: "Hoje, quando penso que fui introduzido ao
sexo tão cedo assim, vejo o quanto tudo isso foi problemático. Mas
sinto que nós, homens, não identificamos situações assim tão facilmente",
diz.
O caso de André - cujo nome foi
trocado a seu pedido assim como o das demais vítimas citadas nesta reportagem -
está longe de ser isolado.
Em média, 27 meninos e homens são
vítimas de estupro a cada dia no Brasil, segundo os dados de 2023 do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública. Respondem por 11,8 % dos casos totais de
violência sexual notificados. No caso de mulheres e meninas são 88,2% do total
e 203 por dia.
Se todos os casos de violência
sexual padecem de serem menos reportados às autoridades, os especialistas dizem
que há, no caso masculino, dificuldades específicas na hora de identificar,
responsabilizar e, sobretudo, prevenir esse tipo de crime.
Assim como no caso das mulheres,
a maioria das vítimas masculinas têm entre 3 e 13 anos, sendo que 65,1% das
violências acontecem dentro de casa, tendo como algozes os familiares (63,3%)
ou pessoas conhecidas (22,2%).
Em uma cultura que não enxerga
meninos e homens como potenciais vítimas de violência, seja importunação
sexual, assédio ou estupro, o silêncio segue sendo uma punição extra, com danos
por toda a vida, segundo psicólogos.
Dentro de casa, por pessoas
conhecidas
Das quatro situações de abuso que
Jorge conta ter sido vítima, três foram com pessoas conhecidas. O primeiro
assédio aconteceu ainda na infância, aos 10 anos. Ele estranhou quando um homem
que conhecia, mas com quem não tinha nenhuma intimidade, pediu que ele sentasse
em seu colo.
Jorge estava em um carro, numa
estrada deserta e quem dirigia era o mecânico da oficina que funcionava abaixo
da sua casa. Naquela tarde, o homem o convidou para aprender a dirigir.
Após conduzir o veículo até um
local afastado e estacionar, o adulto ficou "próximo demais", conta
Jorge. Ainda hoje, lembra de pedir para ir embora e do desconforto que sentiu,
mas não consegue nomear o que viveu como uma violência.
"É sempre nebuloso relembrar
essa cena, não tínhamos muita intimidade e eu não era uma criança tão pequena a
ponto de não alcançar o pedal do carro", conta.
Aos 12, estava sozinho em casa,
quando um colega, quatro anos mais velho, com quem costumava brincar na rua, se
convidou para entrar. O jovem perguntou se Jorge já havia beijado alguém.
"Ele insistiu que queria me ensinar, mesmo depois de eu dizer que não
queria aprender", relembra.
"Foi tudo muito estranho. Me
senti muito vulnerável. Mas só mais velho percebi que aquilo foi um abuso.
Quando lembro, sinto muita raiva e vergonha por aquele beijo ter
acontecido."
A situação mais recente foi em
sua própria casa, com um colega de trabalho. Os dois tinham ido juntos a um
happy hour para comemorar a entrega de um projeto importante e, depois,
decidiram ir para a casa de Jorge.
"A ideia era apenas beber
mais algumas cervejas e continuar o papo, mas, na minha casa, ele começou a
chegar muito próximo, passou a mão em mim e até se ajoelhou insistindo para que
ficássemos", conta.
"Eu disse a ele que, para
mantermos nossa relação numa boa, era melhor que ele parasse por ali, assim eu
também fingiria que nada tinha acontecido", relembra Jorge.
O rapaz também passou por uma
situação de importunação sexual no transporte público. Em 2022, estava
acomodado próximo à janela do ônibus, quando um homem mais velho sentou ao seu
lado no fundo do coletivo. O homem esbarrava o joelho em sua perna
repetidamente.
Notando a movimentação estranha,
Jorge pensou que seria assaltado, mas, assim que olhou para o lado, percebeu
que o homem se masturbava. "Na hora eu não tive reação, só apertei o botão
de parada do ônibus para descer e ele veio atrás de mim. Comecei a fazer um
escândalo até que ele saiu correndo", relembra.
No esporte, com pessoas de
confiança
No caso de Silas, ex-jogador de
futebol e hoje treinador, o risco de ser abusado estava no esporte.
"Desde a época que jogava no
infantil de um time da capital paulista, em 1990, eu escutava rumores de que os
treinadores aliciavam os jogadores. Comigo aconteceu em 1992, aos 17 anos,
quando o treinador me chamou no vestiário e me convidou para passar um fim de
semana em sua chácara. Eu já sabia da fama dele desde o [time] infantil. Peguei
meu material e fui embora. Nunca mais o vi."
Silas conta que o técnico era
discreto, mas os comentários sobre as investidas do profissional entre os
colegas de equipe eram frequentes. Ele acredita que à época muitas pessoas
sabiam das situações de assédio, mas não denunciaram por medo. "Ele era um
cara influente, tinha contatos importantes. Se fosse hoje em dia, que o tema de
assédio é mais discutido, com certeza ele rodava", comenta.
Hoje, aos 50 anos, ele diz que
essa situação foi um divisor de águas para entender os limites da relação entre
professor e aluno. "Aprendi que nem todos os ambientes são seguros e isso
faz com que eu tenha ainda mais respeito pelos meus alunos."
A faixa etária das principais
vítimas — meninos entre 5 e 9 anos — faz com que muitas dessas crianças sequer
compreendam que estão sendo violentadas, o que reforça a necessidade de adultos
atentos e ambientes esportivos seguros.
Para tentar coibir o problema, no
ano passado, o governo federal alterou uma a Lei Geral do Esporte para
incluir medidas de prevenção ao abuso sexual de atletas.
A legislação agora exige que
clubes, escolinhas e entidades educacionais estabeleçam protocolos específicos
para a prevenção e o combate à violência sexual, além de medidas claras de
responsabilização.
Apesar dos avanços legais,
especialistas alertam que a eficácia da norma dependerá da forma como será
implementada, já que denúncias costumam ser ignoradas ou desacreditadas,
principalmente quando envolvem figuras de autoridade.
Para os especialistas, a
responsabilização de quem silencia diante de indícios de abuso — treinadores,
dirigentes, colegas de equipe — é tão essencial quanto a punição dos autores
diretos.
Por que os homens não
denunciam?
Os relatos de Jorge e André
ouvidos nesta reportagem contêm elementos em comum: eles contam ter sentido
vergonha, culpa, impotência e raiva, além de confusão sobre suas percepções. Em
nenhum dos casos eles denunciaram as violências que sofreram.
"É forte falar que fui
abusado pela minha prima, principalmente porque ainda convivo com ela. Nunca a
denunciei. Sinto que o fato de ter sido uma mulher dificultou o meu entendimento
como vítima porque tudo parecia uma grande brincadeira naquela idade",
relata André.
Jorge, por sua vez, confidenciou
uma das situações vividas, anos depois, para sua namorada da época: "Eu
sempre pensei que esse não era um problema tão importante. Mulheres vivem
situações de abuso e assédio sexual todos os dias e seguem suas vidas. Por que
a minha vida pararia?"
Segundo especialistas, o
pensamento de Jorge de que a violência "não era um problema tão
importante" pode ser lido como um reflexo da minimização da violência
sexual contra homens e meninos, que muitas vezes torna o silêncio a única
resposta aceitável.
Por isso, a subnotificação é uma
das maiores barreiras para compreender a real dimensão da violência contra
homens e meninos, já que muitos casos nunca chegam às delegacias.
O tema é objeto de estudo
do psicólogo
Denis Gonçalves Ferreira, que foi um dos autores de um artigo acadêmico
comparando as notificações feitas no Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, com os registros policiais de
casos de violência sexual contabilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP).
Publicado em 2025 na Revista da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o levantamento analisa dados de 2018 e
2022.
Em 2018, foram registrados 5.086
casos violência sexual contra meninos e homens nos serviços de saúde, o Sinan
(Sistema de Informação de Agravos de Notificação). No ano seguinte, seguiu
crescendo, só retrocendendo na pandemia, por causa das limitações de acesso aos
serviços. Em 2022, o dado mais recente, o salto foi ainda maior: 6.355 casos
notificados — o maior número da série histórica e um aumento de 24,9% em
relação à 2018.
No mesmo intervalo, os registros
policiais de estupro e estupro de vulnerável cometidos contra meninos e homens,
organizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, seguiram outro caminho.
Em 2018, foram 12.232 ocorrências registradas nas delegacias, mas houve queda nos
anos seguintes. Em 2022, o número chegou a 8.467, uma queda de 30,8% em relação
a 2018.
A comparação entre os dois
sistemas evidencia uma contraste preocupante, de acordo com o pesquisador. O
motivo é que, em geral, é no sistema de saúde que chegam os casos mais graves —
situações que exigem atendimento médico imediato ou deixam marcas físicas
evidentes — e era de se esperar que as denúncias na polícia crescessem também,
por abranger casos de diversas gravidades.
"Os homens são criados para
serem fortes, então, falar dessa situação [de violência sexual] é colocá-lo num
lugar que ele não foi ensinado para estar, que é um lugar de
vulnerabilidade", diz Gonçalves Ferreira.
Ele é também fundador do
projeto Memórias
Masculinas, que oferece plantões psicológicos gratuitos a homens vítimas de
violência em uma
página do Instagram e um site. O projeto diz receber em média cerca de
20 novos contatos por mês .
Para o psicólogo, a
subnotificação tem múltiplas causas: desde o medo de serem vistos como
homossexuais até a dificuldade de reconhecer que o que viveram foi, de fato,
uma violência.
Soma-se a isso a resposta
fisiológica durante a agressão, como a ereção, que pode confundir a vítima.
"O corpo responder com
ereção cria no imaginário da vítima que ela gostou daquela interação [...]
então ele pode pensar que não foi tão violento assim", explica o
psicólogo.
Para André, o fato de ter sido
violentado por uma mulher dificultou seu entendimento, já que foi ensinado
durante toda a vida que um homem precisa ser viril e estar sempre pronto para o
sexo.
"Passei a adolescência vendo
meus amigos ficando com mulheres muito mais velhas e contando vantagem. Até
pouco tempo atrás, por exemplo, eu relevava quando minhas amigas apertavam
minha bunda do nada, mas sabemos que se fosse o contrário a leitura da situação
seria outra", reflete.
Além disso, para ele, a
pornografia atua como uma vilã, com uma narrativa que não só normaliza a
violência, como a faz desejável.
"Se uma mulher chega em um
cara, ele não pode nem parecer assustado, e ainda precisa corresponder, mesmo
que não esteja com vontade, porque ela pode sair falando que ele é mole ou até
mesmo gay por não querer ficar com ela", diz André.
Para Christian Dunker,
psicanalista e professor Titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a noção deturpada de que,
quanto antes os meninos terem contato com o erótico, melhor para o seu
desenvolvimento, contribui para a violência.
Essa pressão social atribuída ao
homem gera, por exemplo, a prática de incentivar adolescentes, quando completam
18 anos, a irem até uma casa de prostituição para iniciação sexual, como um
rito de passagem.
Dunker diz que essa introdução
precoce de meninos e adolescentes à vida sexual se torna ainda mais perigosa
uma vez que é legitimada pelos próprios pais.
"Levar o filho ao bordel e
forçar primeiros encontros com prostitutas mais velhas são vistos como um
atestado de virilidade para os pais, quando na verdade o que está acontecendo
ali é uma violência", pondera Dunker.
Falar sobre violência sexual na
terapia é parte de um processo que costuma ser longo. Dunker comenta que, por
mais que seja bastante comum este tipo de relato dentro dos consultórios, é
muito raro que seja uma queixa primária, ou seja, que ela já apereça nos
primeiros encontros do tratamento.
"É comum que o tema apareça
depois que já se estabeleceu uma relação de confiança entre paciente e
psicólogo. Depois de relembrar experiências infantis eles identificam situações
de coerção e violência que foram matizadas pela ideia de que aquilo era natural
e aceitável", afirma ele, autor A arte de amar: Uma anatomia de
afetos, emoções e sentimentos (Record, 2024).
A influência da mídia e redes
sociais
Homens ouvidos pela reportagem
dizem ter compreendido a violência contra eles a partir de histórias de abusos
contados por mulheres — amigas, companheiras — ou relatos na mídia e redes
sociais, além de obras de ficção.
Uma produção recente da Netflix
contribuiu para o debate sobre violência sexual e masculinidades: Bebê Rena (2024).
Baseada na história real do
comediante Richard Gadd, ela mostra um homem vítima de abuso sexual no começo
da carreira, crime cometido por um homem.
Mostra ainda o mesmo personagem
tentando denunciar uma agressora mulher que o perseguia.
No Brasil, o humorista Marcelo
Adnet já falou publicamente que foi vítima de violência sexual quando tinha 5
anos. "É uma coisa que ficou lá para trás, mas você tem que falar, você
precisa falar para conscientizar os outros", disse ele ao podcast Podpah
em 2023.
"Socialmente falando, as
emoções dos homens são marginalizadas. Eles jogam bola juntos, vão ao bar, dão
risada, mas não são uma rede de solidariedade, não podem abrir o coração quando
querem. Falta esse senso de comum entre os homens", analisa o psicólogo Denis
Gonçalves Ferreira.
Gonçalves Ferreira lembra que, no
artigo publicado na Revista de Saúde Pública, ele e os demais autores citam
dados de que homens que sofreram violência sexual têm maior tendência ao uso de
drogas, isolamento social, transtorno de estresse pós-traumático e ideação
suicida.
"Não consigo enxergar um
momento em que eu me sentisse confortável para conversar sobre isso [as
violências] com meus amigos, é muito mais fácil relatar situações assim com
mulheres porque sabemos que, infelizmente, elas têm histórias parecidas,
compartilham do mesmo sentimento e sabem acolher", pontua Jorge, sobre as
experiências de abuso que viveu.
"A saída para reverter essa
situação é renovar o nosso olhar sobre a violência sexual para que a discussão
também alcance os homens", conclui Dunker.



Nenhum comentário
Política de moderação de comentários:
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Não serão aceitos comentários anônimos ou que envolvam crimes de calúnia, ofensa, falsidade ideológica, multiplicidade de nomes para um mesmo IP ou invasão de privacidade pessoal / familiar a qualquer pessoa. Comentários sobre assuntos que não são tratados aqui também poderão ser suprimidos, bem como comentários com links. Este é um espaço público e coletivo e merece ser mantido limpo para o bem-estar de todos nós.