Alto Araguaia| Irmãs decidem abandonar cidade após serem acusadas de espalhar covid-19
BBNews
Em 11 de junho, as irmãs Dalylla
Lopes, de 27 anos, Talytta, 22, e Samylla, 21, se mudaram de Alto Araguaia,
cidade mato-grossense localizada na divisa com Goiás. Elas afirmam que deixaram
a cidade em que nasceram para buscar um pouco de paz, em meio à maior tragédia
da família, causada pelo novo coronavírus.
Seis dias antes, a mãe delas,
Lígia Suely Lopes, de 42 anos, morreu em decorrência da covid-19. No fim de
maio, as irmãs haviam perdido o avô materno, Joaquim de Oliveira, de 74 anos,
para a mesma doença.
"Tem sido o período mais
difícil das nossas vidas", resume Dalylla à BBC News Brasil. Ela contraiu
a covid-19 e se recuperou, assim como outros quatro familiares.
Os casos na família foram os
primeiros diagnósticos de covid-19 no município de 17,5 mil habitantes.
Atualmente, mais de um mês depois, Alto Araguaia tem 23 casos confirmados e
três mortes, incluindo as de Lígia e Joaquim.
Em meio à doença causada pelo
novo coronavírus, a família passou a receber comentários e acusações nas redes
sociais. "Disseram que fomos as responsáveis por levar o vírus para a
nossa cidade. Recebemos muitas críticas. Isso tudo é muito triste",
comenta Dalylla.
As irmãs relatam que as diversas
críticas que recebem têm tornado o atual período ainda mais difícil.
"Estamos vivendo à base de remédios para dormir. A nossa vida nunca vai
ser a mesma. Além das perdas, precisamos lidar com a falta de empatia das
pessoas. Toda hora recebemos algum comentário maldoso nas redes sociais",
lamenta Talytta.
O primeiro caso confirmado em
Alto Araguaia
As irmãs contam que a tragédia
teve início após a primeira semana de maio, depois que Dalylla visitou uma
amiga, em uma cidade vizinha. "Foi uma infelicidade muito grande. Eu
estava de folga e decidi encontrá-la", conta Dalylla.
No começo de maio, o país já
enfrentava crescimento exponencial de casos e mortes e uma das principais
orientações era o isolamento social. Mas Dalylla admite que não acreditava que
poderia contrair o vírus no encontro com a amiga, pois não havia nenhum
registro na região.
Ela comenta que foi à casa da
amiga junto com o filho caçula, de nove meses. "Não era um churrasco ou
uma festa. Era apenas um encontro de amigas", argumenta. No local, também
havia uma outra mulher. "Ela era colega da minha amiga e tinha acabado de
chegar do Sul do país. Ela deveria estar em quarentena, porque tinha voltado de
viagem, mas estava lá."
"Essa conhecida brincou com
o meu filho durante o encontro. Pode ser que nesse momento ela tenha passado o
vírus para ele", diz Dalylla.
Dias depois, segundo Dalylla, a
conhecida testou positivo para a covid-19. Foi o primeiro caso confirmado na
cidade vizinha.
Dalylla e o filho começaram a
apresentar sintomas da covid-19. "Tivemos febre e tosse, mas a princípio
não demos importância. Passamos a desconfiar que poderia ser covid-19 quando descobrimos que a mulher que havia testado
positivo na cidade vizinha era aquela que esteve junto comigo e com a minha
amiga", relata.
A mãe, os avós e a irmã do meio,
Talytta, também apresentaram sintomas. A caçula, Samylla, e os dois filhos mais
velhos de Dalylla não tiveram sintomas.
Os testes confirmaram que Dalylla
e o caçula haviam sido infectados pelo novo coronavírus. "Desde os
primeiros sintomas, ficamos em isolamento e comunicamos a todos que tivemos
contato naqueles últimos dias. Como a minha mãe era da área da saúde, ela era
muito preocupada com isso", comenta Samylla.
Os principais sintomas de Dalylla
foram a falta de ar e a tosse. "Eu fiquei muito mal, mas não cheguei a ser
internada. Tive muito cansaço e dor de cabeça", relembra. "Quando eu
respirava, parecia que havia agulhas nos meus pulmões, porque doía muito",
diz Talytta. As duas foram tratadas em casa, com o intenso apoio da mãe.
Lígia era considerada pelas
filhas como uma fortaleza. Ela era técnica de enfermagem, mas há alguns anos havia
deixado a função para trabalhar em uma associação comercial de Alto Araguaia.
"A minha mãe sempre foi
guerreira e muito protetora. No período da covid, ela não se deixava abater.
Estava sempre ajudando a gente", diz Talytta.
Em um áudio para uma parente,
Lígia desabafou. Ela disse que dormia pouco e parecia viver um pesadelo em
razão do coronavírus. No relato, contou que sentia dores por todo o corpo, mas
precisava se manter forte, para não desmotivar as filhas e os pais.
O primeiro familiar a apresentar
quadro grave foi o idoso Joaquim de Oliveira. Diabético, hipertenso, com
problemas cardíacos e nos rins, ele teve intensa falta de ar, febre e foi
levado ao hospital. Joaquim foi intubado, mas não resistiu. Ele faleceu em 26
de maio.
Lígia nunca soube da morte do
pai. Ela foi internada no dia em que o idoso faleceu. Extremamente apegada a
ele, os familiares optaram por contar sobre o falecimento somente quando ela
melhorasse, para não prejudicar a recuperação dela. Porém, o quadro de saúde
dela, que era hipertensa e tinha bronquite, se agravou cada vez mais.
"A minha mãe começou a ficar
debilitada assim que meu avô piorou. Ela ficou abatida, porque sabia que meu
avô não sobreviveria. Foi um choque para ela não poder fazer nada por
ele", diz Samylla.
"Ela deu a vida por nós. Não
caiu em nenhum momento, enquanto a gente estava ruim", relembra Talytta.
Um dos temores da técnica de
enfermagem, durante a internação, era ser intubada. No entanto, diante da
intensa falta de ar, não restou alternativa aos médicos. Lígia foi encaminhada
para um hospital em Rondonópolis (MT). Em 5 de junho, ela não resistiu às
consequências do coronavírus.
"Ela era muito forte. Sempre foi uma guerreira. A gente tinha certeza de que a minha mãe sobreviveria, por isso não nos despedimos dela antes da internação. Foi tudo muito triste", emociona-se Samylla.
'Me sinto culpada'
Ao comentar sobre as mortes do
avô e da mãe, Dalylla admite que se sente culpada. "É um culpa que vou ter
sempre comigo, porque eu fui à casa da minha amiga aquele dia. Me sinto culpada
porque isso custou a vida do meu avô e da minha mãe. Me sinto culpada por estar
viva. É uma sensação muito ruim", relata, aos prantos.
"Eu sei que não fiz por
querer. Não fui para uma festa ou para um churrasco, como vejo muitas pessoas
fazendo com frequência. Mas eu não deveria ter saído aquele dia. A minha cabeça
está bagunçada. Eu fiquei ruim e me recuperei. Mas o meu avô não conseguiu se
recuperar. A minha mãe, que cuidou de todos nós, também não. É muito
difícil", diz Dalylla, em meio às lágrimas.
Um pedido de desculpas marcou a
última conversa entre Dalylla e o avô, pouco antes de o idoso ser internado com
a covid-19. "Queria que ele me perdoasse. Precisava muito do perdão
dele", comenta. "Ele me disse que eu não precisava me desculpar,
porque não era culpa minha e todo mundo poderia pegar esse vírus em algum
momento", relata Dalylla.
Ela afirma que também queria
pedir perdão para a mãe. "Mas não deu tempo. Ela foi levada para outra
cidade. A gente pensava que ela logo melhoraria, mas nunca mais voltou",
lamenta Dalylla.
Lígia foi enterrada em caixão
lacrado e com uma breve cerimônia de despedida. Durante o ato, Talytta se
desesperou, se jogou no chão e pediu desculpas à mãe. "Pelo amor de Deus,
me perdoa. Volta para mim, pelo amor de Deus. Me perdoa. Volta, mãe. Você é a
razão do meu viver. Respira, mãe. Levanta, mãe!", bradou a jovem, em meio
aos soluços, enquanto Lígia era enterrada.
Em conversa com a BBC News
Brasil, Talytta explica que pediu desculpas por "todas as vezes que errou
com a mãe". "Filho às vezes não ouve os pais. Também me desculpei por
estar longe nos últimos meses", comenta Talytta, que estudava Medicina na
Bolívia e havia retornado para Alto Araguaia em maio, em razão da pandemia do
novo coronavírus.
O desespero de Talytta foi
registrado pelo pai dela em uma sequência de vídeos que ele fez durante a
cerimônia de despedida da ex-esposa, para compartilhar com os parentes que não
puderam ir ao local — os velórios para vítimas de covid-19 são limitados para
evitar aglomerações.
"Ele colocou os vídeos em um
grupo da família, para os parentes que não conseguiram se despedir da minha
mãe, porque ela era muito querida. Logo as imagens foram compartilhadas para
outras pessoas e começaram a dizer que eu estava chorando por ter passado o
vírus para ela", diz Talytta.
O vídeo viralizou. Diversas publicações afirmaram que se tratava de uma filha arrependida por ter infectado a mãe com o novo coronavírus, após ir a diversas festas. "Começaram a ofender e criticar muito a gente. Isso é horrível. Não desejo para ninguém. Estamos sendo ofendidas em todos os lugares. As pessoas falam sem saber. Isso é desumano", diz Talytta.
"Eu já me sinto muito
culpada pelo que aconteceu e agora ainda culpam a minha irmã. Não estão
querendo respeitar a nossa dor. Está doendo demais tudo isso", afirma
Dalylla.
Elas afirmam que planejam
processar os responsáveis por compartilhar ofensas contra elas nas redes
sociais. "As pessoas não podem fazer isso com as outras e saírem impunes.
Isso é muito sério", diz Talytta.
A mudança
As irmãs contam que passaram a
receber diversas críticas em Alto Araguaia, desde que foram os primeiros casos
confirmados. Após a morte do avô e da mãe, elas contam que a situação piorou.
"Falta muita empatia. Aquela
cidade, infelizmente, se tornou um peso para a gente. As pessoas nos olhavam
com muito preconceito por lá, como se a gente tivesse culpa de cada caso de
covid-19. Mas nós nos isolamos logo no começo e informamos as pessoas com quem
tivemos contato", diz Talytta.
"Há uma rodovia movimentada
que passa pela cidade, a BR-364, e por isso sempre há gente de outros lugares
por ali. Hoje, já existem pessoas contaminadas que nunca tiveram contato com a
gente. Mas ainda assim, pensam que somos as únicas responsáveis pelo vírus por
lá", afirma Talytta.
Assim como as irmãs, é comum que
os primeiros diagnósticos em determinadas localidades sejam apontados por
moradores como os responsáveis por levar o vírus para uma região. Porém, estudos
sobre o novo coronavírus apontam que é difícil definir o primeiro caso em um
lugar. Isso porque pode haver, por exemplo, pessoas com sintomas leves que
transmitem o vírus, mas não procuram ajuda médica por acreditar que se trata de
um resfriado comum. Desta forma, não entram para as estatísticas sobre a
covid-19.
Depois da morte da mãe e do avô,
as irmãs, que moravam em uma casa alugada em Alto Araguaia, decidiram se mudar.
Com a avó, de 68 anos, que também teve a covid-19 e conseguiu se recuperar, elas
se mudaram para um município em um Estado vizinho.
Na nova cidade, tentam pensar
sobre o futuro. Dalylla e Samylla abandonaram os empregos em Alto Araguaia.
Talytta não quer retornar para a Bolívia.
"Quero ficar por aqui para
cuidar das minhas irmãs e minha avó. Penso em cursar Medicina ou Enfermagem, em
homenagem à minha mãe", comenta Talytta. "Talvez eu faça odontologia,
porque trabalhava como auxiliar de dentista", diz Samylla.
Dalylla admite ter dificuldades para pensar sobre o futuro. "Não consigo fazer planos. Parece ainda que eu estou em um pesadelo e a qualquer momento a minha mãe vai voltar com aquele sorrisão dela e dizer que está tudo bem. Estou suportando tudo isso graças aos meus filhos, que dependem de mim", diz.
Que coisa mais triste gente.Que sofrimento essas moças tão passando.
ResponderExcluirDeus abençoe vcs.tudo vai passar.
Tudo isso vai passar....Confiem no Deus rico em misericórdia.....
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