PEC das Drogas é inconstitucional e deve agravar cenário de violência
Fonte: Agência Brasil Foto: © Arquivo/Agência Brasil |
O Senado aprovou, nesta terça-feira (15), em dois turnos, a
proposta que inclui no artigo 5º da Constituição Federal a criminalização da
posse e do porte de qualquer quantidade de droga ilícita.
Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam
que a medida, além de inconstitucional, deve agravar o cenário atual de
violência, encarceramento e desigualdade social. A avaliação é que
descriminalizar as drogas e promover uma regulamentação seria uma solução mais
eficiente.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) teve 53
votos favoráveis e nove contrários no primeiro turno, e 52 favoráveis e nove
contrários no segundo turno.
“É a demonstração de que o Senado Federal deu as costas para
a Constituição e abraçou essa política de drogas racista, genocida, super
encarceradora e que fortalece facções criminosas”, avalia o advogado
Cristiano Maronna, diretor do Justa, centro de pesquisa que atua no campo da
economia política da justiça.
A PEC, que agora será avaliada pela Câmara dos Deputados,
foi articulada após o Supremo Tribunal Federal (STF) voltar a pautar o
julgamento da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal,
determinando a diferenciação entre usuário e traficante. Um pedido de vista do
ministro Dias Toffolli suspendeu o julgamento em março. A matéria está
em 5 votos a 3 para a descriminalização somente do porte de maconha para
uso pessoal.
Cristiano Maronna defende que o Supremo, ao votar o tema,
está exercendo uma função típica de corte constitucional, que é declarar
inconstitucional uma norma jurídica. “Além disso, o Supremo também exerce uma
função contramajoritária ao impedir a ditadura da maioria política, quando a
maioria política está alinhada para violar direitos fundamentais”, acrescentou.
Proibição
O advogado Erik Torquato, membro da Rede Jurídica pela
Reforma da Política de Drogas, avalia que a proibição é ineficaz. Segundo
ele, a criminalização gera um efeito colateral muito maior do que as
próprias substâncias em circulação na sociedade. O especialista defende
que a regulamentação é o caminho mais eficiente e racional. “As substâncias que
mais causam danos sociais nas famílias e na sociedade, prejuízo ao atendimento
público de saúde, não são criminalizadas. E uma política pública eficiente de
controle de substância, que é o controle do tabagismo, passou longe da
criminalização”, disse.
Membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
(Conad) e integrante da Rede Reforma, a advogada Cecilia Galicio destaca que
não há no mundo precedentes de criminalização constitucional do uso de
substâncias.
“Acredito e torço por uma mobilização social não só capaz de
reconhecer a indignidade da criminalização, como também em ações que discutam o
movimento global de lidar com a questão do uso de substâncias sob a ótica dos
direitos humanos, afinal, o tráfico de drogas é internacional, e não há solução
local possível sem compreendermos esse fenômeno como um todo”, disse.
A conselheira do Conad ainda ressalta que a PEC trata de um
tema que o STF já sinaliza como inconstitucional. “Com a iminência da decisão
do STF, a princípio, dependendo do andamento do julgamento e da votação final
na Câmara, viveremos um período de vacância, no qual podemos estar tanto sob a
égide de uma lei mais justa, que seria a descriminalização, para rapidamente
voltarmos à regência de uma lei injusta e retrógrada como pretende o Senado”.
STF
Erik Torquato afirmou que a PEC das drogas é
inconstitucional e uma afronta ao artigo 5º da Constituição, uma cláusula
pétrea de proteção de direitos e garantias fundamentais, que se dedica a
proteger os cidadãos contra arbítrios do Estado. Ele explica que o artigo só
poderia ser alterado para expandir tais proteções e garantias, jamais para
restringi-las. Isso porque a Constituição não permite a diminuição e o
retrocesso de direitos.
“Essa alteração que está sendo proposta [pelo Senado] insere
no artigo 5º a restrição a um direito, a uma garantia fundamental, ele viola
frontalmente o direito à intimidade, à vida privada, à dignidade, previsto na
Constituição. Então o Supremo poderá ser chamado a se manifestar sobre isso, e
ele pode se manifestar já dentro do recurso extraordinário [sobre
descriminalização de drogas]”, disse.
Em 2015, quando o julgamento começou, os ministros começaram
a analisar a possibilidade de descriminalização do porte de qualquer tipo de
droga para uso pessoal. No entanto, após os votos proferidos, a Corte caminha para
restringir a decisão somente para a maconha. A legislação atual, além de prever
penas, ainda que atenuadas, para quem for pego portando drogas para consumo
próprio, não define a quantidade que difere o traficante do usuário.
Conforme os votos proferidos no STF até o momento, há
maioria para fixar uma quantidade de maconha para caracterizar uso pessoal, e
não tráfico de drogas, que deve ficar entre 25 e 60 gramas ou seis plantas
fêmeas de Cannabis. A quantidade será definida quando o julgamento
for finalizado. No caso concreto que motivou o julgamento no STF, a defesa de
um condenado pede que o porte de maconha para uso próprio deixe de ser
considerado crime. O acusado foi detido com três gramas de maconha.
Para o especialista da Rede Jurídica pela Reforma da
Política de Drogas, uma vez incluída a criminalização dos
usuários na Constituição, haverá um aumento da repressão. “Sem sombra de
dúvida, com a promulgação dessa emenda constitucional que criminaliza os usuários,
aqueles que atuam na repressão ao varejo e ao consumo se sentirão ainda mais
legitimados para implementar a política que já é implementada de combate às
drogas”, disse Torquato.
Além disso, ele aponta que a PEC das Drogas representa a
garantia do comércio de substâncias ilícitas centralizado no crime organizado.
“É a constitucionalização do monopólio do tráfico de drogas na mão do crime
organizado. Ou seja, é um desserviço à sociedade o que o Congresso Nacional
está prestes a fazer.”
O advogado ressalta que o desdobramento mais natural da
PEC é o acirramento de uma disputa de narrativa, no âmbito da criminalização de
usuários e da perseguição violenta ao varejo de tais substâncias, o que tem o
potencial de impactar uma população já vulnerável, residente em áreas de pouca
assistência social, de baixo desenvolvimento humano, como as periferias das
grandes cidades e o interior dos estados.
“[Locais] onde o Poder Público se mostra muito deficiente na
garantia dos direitos e garantias fundamentais - saneamento básico, educação,
segurança - e onde os grupos armados têm uma presença mais efetiva, que é
também onde o combate violento ao comércio dessas substâncias ocorre.
Certamente, os jovens pretos periféricos que moram nessas zonas de baixo
desenvolvimento humano, nas periferias, nas favelas, eles se tornarão ainda
mais vulneráveis a uma política de repressão que é violenta, estigmatizante e
criminalizante”, alerta.
Cristiano Maronna enfatiza que o voto do ministro do STF
Alexandre Moraes, neste caso da descriminalização, escancarou o modo
disfuncional como a lei de drogas é aplicada atualmente, já que a mesma
quantidade para um jovem negro periférico caracteriza tráfico e para pessoas
brancas em bairros nobres caracteriza uso pessoal.
“O ministro faz um verdadeiro libelo contra o sistema de
justiça - polícia, Ministério Público e judiciário - ao reconhecer que, depois
que a lei de drogas entrou em vigor, usuários negros, pobres, periféricos e com
baixa instrução passaram a ser tratados como traficantes em comparação com
pessoas brancas flagradas com a mesma quantidade de drogas. Para o Senado
Federal, essa situação não é um problema, isso não sensibilizou os senadores”,
disse.
Saúde
Em relação a pessoas que fazem uso abusivo de drogas,
Maronna aponta que a PEC fala em tratamento e avalia que isso se configura
“um risco de massificação das comunidades terapêuticas, de implementação de
medidas higienistas, como a internação forçada, que tem um índice baixíssimo de
eficácia”.
Erik Torquato reforça que o tratamento de pessoas que fazem
uso abusivo de substâncias jamais poderia estar previsto numa norma de cunho
criminal. “Tratar pessoas que são doentes dentro de uma norma penal é um
contrassenso, é criminalizar a condição de saúde da pessoa. É dizer que uma
pessoa está doente porque ela é criminosa, ou é criminosa por estar doente”,
disse.
Segundo ele, a criminalização dessas pessoas, promove, na
verdade, seu afastamento dos equipamentos de saúde, cuidado e atenção. “Nós
estamos afastando essas pessoas de uma atenção humanizada, de uma política
pública humanizada. É inadmissível tratar aquilo que é assunto de saúde pública
numa norma criminalizante.”
Diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de
Defesa (IDDD), Marina Dias aponta que a lei de drogas aprovada em 2006, embora
tenha problemas, muda o olhar em relação ao usuário, passando a ter uma
perspectiva mais humanista e integrativa, além de despenalizar.
“Quando se traz a criminalização de novo, novamente afasta
esse cidadão da política de saúde pública. Tem aí um recado de que aquilo que
ele faz é crime. E joga-se para debaixo do tapete um problema que é super
importante de ser enfrentado a partir de uma perspectiva de saúde, a partir de
uma perspectiva de educação, de conscientização”, avalia.
Ela reafirma a inconstitucionalidade da proposta de emenda à
Constituição sobre as drogas, já que restringe as garantias fundamentais e
individuais.
“São vários passos atrás, é um retrocesso tremendo e não
existe nenhum precedente em outro país democrático de levar para a Constituição
Federal a criminalização de qualquer droga”, finaliza.
Nenhum comentário
Política de moderação de comentários:
A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Não serão aceitos comentários anônimos ou que envolvam crimes de calúnia, ofensa, falsidade ideológica, multiplicidade de nomes para um mesmo IP ou invasão de privacidade pessoal / familiar a qualquer pessoa. Comentários sobre assuntos que não são tratados aqui também poderão ser suprimidos, bem como comentários com links. Este é um espaço público e coletivo e merece ser mantido limpo para o bem-estar de todos nós.